em 21/02/2004 por Hugo Montarroyos
Não gosto de carnaval. E justamente por isso o Recbeat sempre esteve em alta cota comigo. Mas, ao anunciar a programação desse ano, confesso que fiquei receoso. Como jornalista é uma raça pentelha, que procura (e muitas vezes acha) defeito em tudo, tive medo de ter que falar muita coisa negativa sobre a edição 2004 do festival. Bem, se todas as noites forem iguais a primeira, poderei ficar sossegado.
Aliás, só o Recbeat mesmo para deixar uma atração como o Afoxé Alafin Oyó abrir o trabalho. com 25 integrantes divididos entre percussionistas, dançarinos e intérpretes, o AAO se esforçou em atrair a atenção dos roqueiros, conseguindo a adesão imediata de alguns deles. de minha parte, enquanto conversava com alguns colegas de trabalho, comecei a sentir algo esquisito no ar. Se apresentação demorasse mais uns dez minutos, acho que começaria a cantar e dançar feito Dona Selma do Coco.
Os Astronautas abriram a parte rock do evento. Vestidos de vermelho, segurando garfos satânicos de borracha, a banda demonstrou coragem, chutou o balde e ganhou o público, que, sem o recurso do telão, pôde se dedicar a nobre tarefa de abrir rodas de pogo. Impressionante a coragem de André Frank e comparsas. Mandaram de cara “Nós Rôbos”, emendaram com “Orbital” e “Psicodelia Cotidiana”. Amparados por um belo jogo de luz, o grupo talvez tenha feito o melhor show da carreira. Aqui vale abrir espaço para a nova estrutura do Recbeat. Tudo funcionou bonitinho. Local legal, som perfeito e iluminação excepcional. Se as bandas tivessem sempre esse tratamento ! Entre as coisas “bizarras” do show do Astronautas, destaques para a cover “The Model”, do Kraftwerk (quem diria que um dia os roqueiros iriam curtir algo dos criadores da música eletrônica. Mudança dos tempos ? Fruto da globalização e da livre troca de músicas pela rede ? Sei lá…) e a ameaça (pena que ficou só na ameaça) de tocar a tristíssima e apropriada “No Surprises”, do Radiohead. Pra fechar, “Ultravioleta”. Dez ! Já tinha gente dizendo que seria o melhor show da noite. Foi excelente, mas não o melhor.
Primeira boa surpresa da noite, o piauiense Narguilê Hidromecânico impressionou pela consistência do seu som, pela técnica dos músicos e pela boa mistura de todos os ritmos que você possa imaginar. Acho que o vestuário dos integrantes resume bem a proposta sonora da banda; o guitarrista e vocalista Nando vestia uma camisa de Cartola, o baixista Júnior D ostentava uma camiseta do Rage Against the Machine e um dos percussionistas suava em bicas numa camisa de Bob Marley. O guitarrista Márcio toca uma barbaridade. O som ? Forró, baião, pop, rock, hardcore, às vezes separado, às vezes tudo isso misturado. Caia por água abaixo minha primeira desconfiança da noite. O público gostou tanto que pediu mais. Quem viu e ouviu, não se arrependeu.
Tenho uma tendência machista de ficar desconfiado de toda banda que é idolatrada pela mulherada. Quase toda amiga que possuo já tinha me falado bem dessa banda, esquisitamente chamada A Roda, que eu ainda não conhecia. Estava pronto para ver mais um embuste ser desmascarado. Mas, devo reconhecer, minhas amigas estão cobertas de razão. Os caras tocam jazz instrumental! O público curtiu! A banda é ótima! Os músicos excelentes, tanto que faço questão de citar o nome de todos; Eduardo (guitarra), Charles (bateria), Yuri (baixo), Fernando (teclado), Irandê, Homero e Guga (percussão), André e Marcos (metais) deram uma aula de boa música, calaram minha boca, provaram que a banda funciona bem em locais abertos e, acima de tudo, mostraram que não são apenas uma promessa, e sim uma realidade muito agradável de testemunhar. Foram aplaudidíssimos. O mundo ainda tem salvação.
Agora, surpreso mesmo fiquei com a excelente performance de Lan Lan e os Elaines. Cada músico merecia um parágrafo à parte, mas não farei isso com vocês, não se preocupem. A moça é talentosa, possui uma presença de palco fora do comum, canta, grita, provoca, sugere, escancara, incorpora. E ainda desfruta da ótima companhia da “nega maluca” Nara Gil (nas palavras de um amigo, “a Gil do Bem”…) e do excepcional baixista Fernando Caneca que, vestido todo de preto, adepto de dread e usando uma saia, parecia um cruzamento bizarro entre um músico do Korn e o Vingador, do desenho “Caverna do Dragão”. Difícil traduzir o poder da banda ao vivo. A desbocada Lan Lan gritou no começo do show “A putaria vai começar”. Pensei “lá vem suruba”. Que nada. O que vi foi uma banda possuída pelo demo, um peso absurdo, uma energia contagiante. Até em momentos que seriam fadados ao ridículo, como em uma coreografia em que todos os integrantes dançam feito galináceos cibernéticos, acabam fazendo sentido e hipnotizam o público. Lan Lan batuca, corre, xinga, agradece. Nara Gil sacode as cadeiras, viaja, canta “Diversão”, do período fértil dos Titãs. Tocam “Quando a Maré Encher” e conquistam a platéia GLS, os skatistas, gente que estava de bobeira, todo mundo. Foi uma reação, no mínimo, insana. Atacam com “Paranóia Delirante”, convidam um dos integrantes do Pedro Luís e A Parede e detonam “Bichos Escrotos” (como previra o ligadíssimo Bruno Negaum), em nova homenagem titânica.
Não, Lan Lan não é apenas uma herdeira de Cássia Eller, muito menos uma espécie de Otto de saias. Ela é rock! Quando desci do palco e comentei com um amigo que tinha achado o show “do caralho”, ouvi o seguinte comentário, “até tu, Brutus!”.
Em relação ao Devotos, que subiu ao palco perto das três da matina, conclui que não se trata mais de uma banda, e sim de um fenômeno social. Cannibal agradeceu ao público por esperar até àquele horário e começou os acordes de “Nós Faremos que Você Nunca se Esqueça”. Pronto! Começou uma roda de pogo que durou por todo o setlist, que incluía “Caso de Amor e Ódio”, “Nosso Ninho”, “Dia Morto”, “Vida de Ferreiro”, “Mas Eu Insisto”, “Asa Preta”, “Faz Parte do Cotidiano”, além da clássica “Punk Rock Hardcore”. Surpresa foi o fato deles encerrarem o show com o reggae “Pra Aliviar”. Ótima apresentação, apesar do cansaço do público, do meu e de toda a equipe que cobria o Recbeat.
Duro vai ser decidir qual foi o segundo melhor show da primeira noite, porque o melhor foi o de Lan Lan, incontestável. Agora, meu amigo, difícil mesmo é caminhar pelo Recife Antigo depois das três da manhã e ser obrigado a escutar música baiana. Fazer o quê ? É carnaval! Quem não gosta disso, como eu, que vá pro Recbeat.
Clique na foto abaixo para abrir a PopUp com as fotos do RecBeat 2004:

Links:
» Astronautas no RecifeRock
» A Roda no RecifeRock
» Devotos no RecifeRock
——–