Pode-se dizer, sem nenhum medo de cair no ridículo ou no exagero gratuito, que o final de semana que abrigou o Festival Mundo, em João Pessoa, talvez tenha sido o mais marcante, significativo e representativo dos últimos anos para quem acompanha a cena independente do nordeste. Porque, de uma forma absurdamente espontânea, tudo conspirou para que a edição deste ano do evento tivesse um quê de marco zero na história da nova geração da Paraíba. Poucas vezes vi uma comunhão, um “acordo tácito” que envolvesse de forma tão intensa bandas, público e produção do festival. Como explicar, por exemplo, que a banda mais bacana a pisar no palco do Mundo deste ano fosse formada por três gurias de 18 anos que já tocam com um banca e competência de dar inveja em muito marmanjo com anos de estrada? Que eu presenciaria o melhor show que já vi do Mundo Livre S/A, e justamente no dia em que o grupo tocou desfalcado de seu tecladista. Que, numa ironia tragicômica, a van que quebrou em Pipa e que transportava o Amp e o Black Drawing Chalks acabou dando brecha para uma inesquecível esticada no Espaço Mundo, onde as duas bandas puderam, ao contrário do que parecia ser uma desastrosa tentativa de colocar os dois grupos juntos no palco quatro horas antes, tocar o que quisessem, do jeito que bem entendessem e emocionados de tal forma que Djalma, guitarrista da Amp, dissesse em alto e bom som que estava vivenciando um dos melhores momentos de sua vida. Que, na plateia, entre bravos resistentes que ouviam as duas bandas descer o sarrafo até perto das cinco da matina, estivesse um Zeroquatro batendo cabeça para desabafar o leite que tirou de pedra minutos antes. E, sobretudo, com a consciência de que estava testemunhando algo que ficará cravado e registrado na história da cidade. Chegaremos lá. Antes, o início.
Primeira constatação: como tem mulher bonita em João Pessoa! Se você ainda não conhece a capital paraibana, fica a dica. Garanto que não vai se arrepender…
Impressionante o quanto o festival cresceu em um ano. Em todos os sentidos. Passou do acanhado Galpão 14 para a Usina Cultural Energisa, lindo – e enorme – espaço que abriga um jardim, estacionamento, sala multimídia e local para shows. Além da música, o Festival Mundo também contou com exposição de arte coletiva, exibição de curtas, oficinas, debates e palestras. O preço era muito convidativo: R$8,00 antecipado; R$10,00 na hora e R$ 15,00 o pacote para os dois dias. Sem contar o “meia cidadão”, que saía por R$6,00 e 1kg de alimento não perecível.
Cerca de mil pessoas compareceram ao primeiro dia de festival. Público, em sua grande maioria, formado por gente muito nova. Aqui cabe um parêntese: o público paraibano é extremamente receptivo e bem-educado. Estão abertos para o metal do mesmo jeito que para o rap, rock duro e experimentalismos. Isso facilita bastante as coisas para quem está no palco. Após o show no segundo dia, o pessoal da Amp comentava comigo que estava impressionado em como as pessoas responderam ao seu som: rodas de pogo e moshs – além de confusão com técnicos de som – permearam a apresentação da banda, que será comentada mais detalhadamente na cobertura do segundo dia.
O Festival Mundo 2009 começou com metal. Bebiam dessa fonte as três primeiras bandas da noite: R.I.D, Soturnus e Dissidium. As duas primeiras, porém, enfrentaram problemas técnicos. O som das guitarras, nos dois shows, estava muito baixo. Ainda assim, cada qual a sua maneira, conseguiram passar seu recado.
O R.I.D. faz um thrash metal que certamente seria melhor apreciado se o som das guitarras não estivesse tão baixo. Os fãs (vários bangers se faziam presente no momento) ficaram satisfeitos, pois a banda trabalha bem todos os clichês do gênero: vocal gutural, cara de mau, som encorpado. Mas foram visivelmente prejudicados pelo som baixo.
O Soturnus é um pouco mais ousado, e se arrisca na praia do death metal. O som baixo também prejudicou a sua performance, o que é uma pena, pois é uma variação do metal que, quando bem trabalhada, dá ao ouvinte uma sensação de estar sendo esmurrado no ouvidos. Ou seja, trata-se de algo tremendamente visceral, e é aí que reside toda sua graça. Com o som baixo, perde-se boa parte deste impacto. Deu para notar que a banda poderia render mais em condições normais, mas o público não deu a menor bola pra isso e seguiu batendo cabeça até o fim.
O Dissidium conseguiu tocar em perfeitas condições. Tanto que, apesar de contar apenas com uma guitarra na formação – que fazia solos e bases -, soou mais forte do que as duas bandas anteriores, que possuem duas guitarras. A banda também soube chamar atenção para si no visual: o vocalista entrou em cena com a máscara do Jason, com todo um clima criado, para depois arrancá-la do rosto e ficar o resto do show com sobras de faixas na cara, como uma ex-múmia ou algo do gênero. Uma das músicas homenageou um tal de Michael Meyers, e, quando ninguém mais parecia se lembrar de quem se tratava, vieram as notas de piano para dissipar qualquer dúvida: era o personagem de “Helloween”. O show foi interessante. Muito mais pelo jogo cênico do que pelo som propriamente dito. Curioso é que quase todos os metaleiros (perdão, sei que a culpa pelo termo é da Globo) deixaram o local depois.
Aí entrou em cena a local Cerva Grátis, que evoluiu bastante em um ano. Estão mais seguros. E mais despojados, pois a proposta da banda é fazer um rock cru, direto, sem firulas. O isopor escrito “cerva grátis” continua na frete do palco, e, volta e meia, o público era brindado por uma latinha. Tocaram o mesmo cover do ano passado, “Família que Briga Unida”, do Little Quail and The Mad Birds, antigo grupo de Gabriel, do Autoramas. Bom show de uma banda que tem tudo para se firmar no cenário independente.
Mil desculpas ao Distro, de Natal, pois não consegui ver o show da banda. Estava tentando jantar na hora em que tocaram. Aqui cabe um espaço para a única falha na organização: só existia uma lanchonete para atender tamanha demanda, o que tornava o processo todo bem lento, e conseguir um sanduba (entre vinte minutos e meia hora de espera) era um feito heróico. No segundo dia o problema foi sanado, com uma van de dogão saciando a fome de muita gente. Ao Distro: terei atenção redobrada no próximo show de vocês. Não seria honesto tecer comentários sobre algo que não vi.
Já o do Baggios consegui ver todo. Trata-se de uma dupla sergipana na mesma linha do White Stripes. E o problema é justamente esse. Quando não se parece demais com WS, lembra Hendrix, Deep Purple, Led, Eric Clapton. São excelentes músicos, mas a criatividade é nula. Todos os riffs e solos lembram algo que já foi infinitamente tocado por alguém. Nada ali tem luz própria. Uma pena, porque são bons músicos mesmo. Mas é aquela história: nem todo mundo nasceu para compor. Talvez seja o caso deles.
E o paraibano Sacal dividiu opiniões, tanto entre jornalistas como no público. É uma banda de rap, com todos os trejeitos e vícios de toda banda de rap. Para sair da armadilha de cair no lugar-comum do estilo, existem duas opções: fazer um som diferente, como no caso do Faces do Subúrbio, que misturava embolada com rap. Ou, então, ser muito bom letrista. E conseguir a dura tarefa de cantar letras quilométricas sem dispersar, mantendo a atenção do público. Para mim, o Sacal pareceu fraco tanto no som como nas letras (não, não vou cair no trocadilho fácil do nome do grupo). Mas muita gente gostou e cantou junto. Vai ver que captaram algo que não fui capaz de perceber.
Dane-se o politicamente correto: o Burro Morto é uma das melhores bandas do Brasil. Como só percebi agora que a raiz da obra da banda é Fela Kuti? Que o nigeriano é o fio condutor de todo o seu trabalho. Vai ver (e aí a coisa fica ainda mais impressionante) que é porque o Burro Morto o faz de maneira tão própria, tão sua, que Fela Kuti parece mais uma entre tantas influências. E aí é preciso enfatizar a diferença entre influência e cópia. Influência é adaptar algo ao seu estilo. E é isso que o Burro Morto faz. E o mais bacana é que vem conquistando reconhecimento popular. Mesmo que, à primeira vista, seu som pareça hermético demais. Isso acaba com aquela premissa que reza que o público é burro. O show deles foi o mais concorrido da noite. Tudo parece uma longa jam experimental, mas feita com tamanha entrega e competência que contagia quem está ao redor. Somos levados a crer que também estamos no palco, tamanha é a simbiose estabelecida entre público e banda. Um dos melhores shows que vi em 2009.
Como a vida não é perfeita, veio na seqüência os insuportáveis Eklips, DJ Nelson e Marko 93. O público não arredou pé, e parte disso pode ser credenciada a carência de shows internacionais em João Pessoa. Porque o dos franceses foi tremendamente chato, batido, monocórdio, enfadonho. Daqueles que dão vontade de saber onde fica o botão que desliga tudo. Pelo menos o público gostou. Mas, na boa, não chegam nem na unha do dedo mindinho do pé do Burro Morto…
10 Comments
Adorarai que os jornalista e colegas de Recife viessem sempre a João Pessoa!!! a surpresa é sempre essa – mas é isso… somos vizinhos e ninguém se aproveita disso!! Bora açi tomar uma xícara de café :)
Muito bom o Festival Mundo quem venha mais!
Psiu, só um parenteses… Sacal não é rap, é ragga! E sim, existe uma diferença ai…
Trejeitos de banda de rap? Onde estão as correntes, a mania de falar que é favelado ou usar um boné de lado?
Eu vi foi pé e raíz no chão, e um único representante do ragga em todo o nordeste!
Obrigada!
=)
Ah, e concordo quando vc diz que Burro Morto é uma das melhores bandas do Brasil!
;)
*adoraria
**ali
:)
Opa, muito massa sua resenha, sou da banda Cerva Grátis, só pra corrigir um erro, a música do Little Quail não foi tocada ano passado, essa música colocamos no repertório recentemente para tocar no Festival Mundo desse ano. :)
Gostei da resenha. quero ver a do segundo dia, que vi também que gostou bastante da Blue SHeep! :) o Rock não para! Vamsimbora!
rap e ragga são bem diferentes. depois fui procurar esse Sacal que falaram aí e o cara é bom mesmo. é dancehall, raggamuffin e essas coisas, mas rap mesmo não é
como tem mulher bonita em João Pessoa! Se você ainda não conhece a capital paraibana, fica a dica. Garanto que não vai se arrepender…
Assino e dou fé! :P
hahahahahaha
Po Hugo, como voce ainda nao tinha se tocado do Fela kuti?! Eu acho ate explicito a parada, se o cd da Burro Morto saisse esse ano ainda, seria o melhor do ano facinho… :)
E cada vez mais me arrependo de nao ter ido pro mundo desse ano…
Cara antes de vc por suas resenhas vc deveriam deixar de escutar menos metal e abrir sua mente pra outros tipos de musica ,e aprender a ponderar-se mais a suas criticas tbm ,,,
peace out
A influência de Fela Kuti, e de Afro Beat de uma forma geral, sempre foi algo muito aparente no som do Burro Morto. Mas antes tarde do que nunca.
Fala Hugo, no Festival Dosol vou cobrar a resenha hein? heheheheh aproveito pra te dar o ep da gente também, que quando te prometi, fui pegar e já tinha acabado(bom ou ruim?), hehehe mas no Dosol nós se ve e com resenha hein??
Abraços
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