Os números são mesmo de impressionar: 15 mil pessoas lotaram as dependências do Chevrolet Hall na primera noite da vigésima edição do Abril pro Rock. Público recorde da história do festival, tal êxito pode ser creditado sem dúvida ao Los Hermanos, maior nome do rock nacional das últimas duas décadas – goste-se ou não deles, é fato incontestável. O mérito é ainda mais impressioanante se levarmos em conta a concorrência com Chico Buarque, que fazia show no mesmo horário e a poucos metros dali, e a onipresença de Paul McCartney, às vésperas de pisar em solo recifense e com os ingressos esgotados para duas apresentações no mesmo final de semana do Abril pro Rock.
O fato é que a relação de amor (é piegas, mas o termo é esse mesmo) entre Los Hermanos e Recife começou justamente no Abril pro Rock, num já distante 1999, em show discreto e quase despercebido dos cariocas no palco 2 do festival. Pouco tempo depois, o estouro de “Ana Julia” catapultou a até então desconhecida banda em fenômeno pop em seu disco de estreia. E, no ano seguinte, lá estavam eles de novo no APR. Desta vez, no palco principal.
“Ana Julia” acabou escanteada pela própria banda – canção que ironicamente foi abençoada pelo ex-Beatle George Harrison – em troca de proposta mais ousada e menos acessível no segundo e definitivo disco, “Bloco do Eu Sozinho”, fase que também teve no Recife o seu marco zero, com show em que voltavam a trafegar no universo independente no Armazém 14, em 2002. Alguém ainda consegue imaginar que o Los Hermanos caiba no Armazém 14?
E a consagração veio, novamente, via Abril pro Rock. Em 2003, às vésperas de lançarem “Ventura”, apresentaram pela primeira vez “O Vencedor” no festival. Foi então que o fenômeno de fato se consolidou: o público recifense era capaz de cantar ainda mais alto do que a banda todos os versos de todas as letras da dupla Camelo/Amarante.
Assim sendo, natural que a banda tenha escolhido Recife e o Abril pro Rock para inaugurar sua nova turnê, que, a julgar pelo que foi visto ontem, no Chevrolet Hall, pode até gerar mais frutos. Entre as 29 (!) músicas apresentadas pela banda, três são inéditas em gravação, o que dá a entender que eles não andaram apenas ensaiando nos últimos tempos, mas compondo também. E, pelo frescor que as canções novas mostram dentro do repertório do grupo, fica difícil de acreditar que se trate de material antigo reaproveitado.
Mas a constatação mais óbvias de todas é que, em show do Los Hermanos no Recife, quem dá show mesmo é o público. A maioria parece entrar em uma espécie de transe particular/coletivo, parecendo, segundo um amigo, receber o Espírito santo. E, ao contrário de outras vezes, onde o Los Hermanos parecia adotar uma postura meio apática no palco, desta vez eles se esforçaram pra valer.
A abertura da noite coube aos catarinenses do Somato, banda vecedora da segunda edição do concurso Biss pro Rock. Com proposta ousada, em que combinam algo como música folclórica irlandesa, guitar noise, pop inglês oitentista e uma formação que incluía um violoncelo, o quinteto enfrentou vários problemas com o som, que estava bem longe do ideal. Em seus melhores momentos, quando explodia em densidade, chegavam a remeter a fase em que o Radiohead gostava de guitarras. Em seus piores momentos, lembrava Evanescence mesmo. Na maior parte do tempo, porém, nem uma coisa nem outra, e a principal característica da banda era sua falta de identidade definida. Ainda assim, foram bem recebidos pelo público. E mereciam ser melhor avaliados em condições mais favoráveis.
Quem evoluiu tremendamente nos últimos anos foi Tibério Azul. O cantor, principal referência da extitna Mula Manca e a Triste Figura, se converteu de tímido vocalista da banda que tentava unir música e literatura em um artista que revindica para si – e com muita propriedade – o status de poeta. Musicalmente, o salto foi ainda maior, dialogando elementos nordestinos com algo de country e um quê de Neil Young versão acústica. Ou até mesmo resvalando no jazz, caso da participação especial do pianista Vitor Araújo. Como não é bobo, cercou-se de ótima banda, formada por Lucas Araújo (bateria, ex-Parafusa), Iuri Queiroga (guitarra), André Julião (acordeon) e Areia, do Mundo Livre S/A, tocando magistralmente um baixo acústico. Músicos afiados que não se comportavam como meros coadjuvantes, ajudaram Tibério a dominar o palco e a pernder a atenção do público a cada segundo de sua apresentação. Tudo indica que estamos diante de outro nome da nova música pernambucana que promete muito.
A grande incógnita da noite atendeu pelo nome de A Banda Mais Bonita da Cidade, de Curitiba. Imagine um grupo de amigos que passou a vida ouvindo “The Bends”, do Radiohead, na adolescência, e conseguisse estragá-lo na vida adulta. Todas as melodias pareciam saídas do disco da turma de Thom Yorke, só que em versões tragicômicas, tamanha a fragilidade das letras, que rimam “ótica com ética e ótima”. Eis outros exemplos do lirismo da banda: “cansei de ser joguete, cansei de ser cacete”. Tem mais: “Eu vou cometer harakiri mesmo sabendo que neste momento você ri”. O que dizer de um show que teve num cover da pernambucana Lulina – “Meu Príncipe” – o seu melhor momento, tranformando em algo dark o que originalmente é uma sátira aos anseios femininos por um homem perfeito? Ok, até que o hit “Oração” é bonitinho e foi cantado por boa parte do público no final do show, mas a impressão que fica é tão desagradavelmente ambígua que ficamos sem saber se é tudo mesmo levado a sério ou se é apenas piada. E o resultado não é favorável em nenhum dos casos. Às vezes soa como trilha sonora da adolescente angustiada cujo principal passatempo é se cortar no banheiro. Outras, como um Lupicínio Rodrigues embalado em versão modernete e sem um pingo de criatividade. No que tem de melhor, lembra apenas uma cópia mal executada do que o Radiohead fez até 1995. Ou, mais provável, eu que sinceramente não entendi bulhufas. Tomara que seja isso.
Aos primeiros acordes de “Além do que se vê” o jogo já estava ganho pelo Los Hermanos. Havia fãs da banda se esgoelando até atrás do espaço que serve como sala de imprensa, espremidos no balcão do bar. Nunca o Chevrolet Hall pareceu estar tão entupido de gente. “O Vendecor” veio no embalo, gritado em uníssono. Mas o show, embora acompanhado frenéticamente do início ao fim pelo público, esteve longe da perfeição. O som ficou embolado em diversos momentos. Em algumas situações a própria banda admitiu as falhas técnicas. Ao ouvir de um fã na primeira fila que não stava ouvindo nada, Amarante desabafou: “É o que posso fazer. Estou cantando. Tenta aproveitar o momento do jeito que está mesmo”. Mas, quando casava de som e banda se acertarem, o resultado chegava a ser demolidor, casos de “Cara Estranho”, “A Flor” (composta em Olinda por Amarante), “Todo Carnaval Tem Seu Fim”. A partir de certo momento, o público começou a pedir “Pierrot”. Quando diziam que tocariam algo inédito, a plateia resmungava com um ahhhhh – só faltou o “que peninha”, do palhaço Bozo, para acompanhar a lamúria. Quando era atendida, porém, a plateia retribuía com histeria, como no caso de “Quem Sabe”.
O show acabou sendo extremamente longo (mais de duas horas de apresentação) e até cansativo por vezes, mas a devoção do público é algo que não se vê desde os tempos de Legião Urbana. No fim das contas, fiquei com a seguinte pergunta na cabeça: que outra banda seria capaz de fazer um show com 29 músicas em que quase 90% deste material é cantado com fé genuína por seus fãs? E que, ao mesmo tempo, seja relevante na história recente da música popular brasileira?
No final, todas as partes saíram satisfeitas. O Abril pro Rock comemorou seus vinte anos com o maior público de sua história. O Los Hermanos constatou que ainda tem lenha criativa de sobra para queimar. E quanto aos críticos? Bem, mesmo os que não gostam muito dos shows deles reconhecem que “Ventura” e “Bloco do Eu Sozinho” são dois dos discos fundamentais na hora de contar a história recente da música brasileira. Aliás, aqui vai o único senão: voltem a tocar “Ana Julia”. George Harrison gostava. E isso basta.
5 Comments
Salve Hugo!
Muito bom que voltou a escrever para o RecifeRock!
Gosto muito.
Abraços!
duas musicas ineditas…. Sinal de cd novo… Naaaaooooo pelaamordedeus nao faça isso com nosso ouvidos.. Sabemos que todo castigo para corno e pouco mas esse cara ja e de mais..
Coisa boa é abril o Recife Rock e me deparar com um texto teu, Hugo. Concordando ou não, suas ponderações estavam fazendo falta danada. Fica com a gente, homem. Bjão
uma beleza de texto, uma beleza de Festival, uma beleza os comentários, tudo beleza então!
Gostei do texto. Vai haver comentarios sobre os demais dias do festival? pois não fui em nenhum dia(fui assistir Paul). Gostaria de opiniões alternativas desse festival que não vou à quatro anos(já que nos jornais locais tudo é muito “pasteurizado”).