A primeira noite da vigésima-primeira edição do Abril pro Rock foi marcada pela diversidade. E de uma forma que não se via há muito tempo no festival. A sequência de shows que envolveu Volver, Television, Marcelo Jeneci e Siba foi prova cabal disso. Artistas com propostas absolutamente distintas, foram capazes de empolgar o mesmo público durante suas apresentações. No fator audiência, a surpresa acabou sendo o paulista Marcelo Jeneci: ficou claro que a maioria saiu de casa para ver o show dele. No mais, a lenda viva do rock Television emocionou a parcela mais velha do público, Volver fez show de quem já é grande há tempos no Recife e os holofotes acabaram mesmo todos em cima de Marcelo Jeneci. Tanto que muita gente foi embora depois do show dele. A outra parcela que ficou até o final era composta por fãs de Siba e de Móveis Coloniais de Acaju, que fechou a noite.
Um verdadeiro dilúvio caiu no Recife no início da primeira noite do APR. Isto fez com que boa parte dos pagantes chegasse com certo atraso ao Chevrolet Hall. Mas, mesmo assim, no fim das contas o número de pessoas presentes acabou sendo surpreendente. Se formos levar em conta que a escalação do primeiro dia não trazia nenhum nome que garantisse a lotação do lugar (apesar de ser uma lenda, no frigir dos ovos são poucos os que conhecem Television no Recife) e o temporal que caiu no Recife, o público da primeira noite foi bem numeroso. Aquela coisa: longe de lotar; e também longe de estar vazio.
Coube ao local Tagore a tarefa de abrir a noite. Completamente influenciado pela fase inicial da carreira de Alceu Valença. Tagore brindou os poucos presentes ao seu show com um som psicodélico, fincado nas raízes nordestinas, mas sem abrir mão da universalidade – neste caso, o pop inglês -. É o oposto completo de sua antiga banda, o The Keith, que fincava os dois pés na geração – e na sonoridade – dos Strokes. Trata-se de rock com sotaque nordestino da melhor qualidade. Nota-se que é uma banda que buscou uma identidade e a encontrou de forma certeira entre discos de Alceu, um quê de lisergia e muita energia no palco. Belo show.
O mesmo não pode ser dito sobre Babi Jaques & Os Sicilianos. Performática, a banda mistura um pouco de teatro com uma sonoridade chocha e sem graça. A ideia é trazer o uniiverso mafioso dos anos 50 para a música. Algo que fica entre o “quase blues” e o “quase rock” para redundar em muita pose e pouca música. Força a barra para soar engraçado, mas, no fim das contas, acaba sendo, na maior parte do tempo, chato. Uma pena, pois são bons músicos, embora a vocalista Babi Jaques seja fraquinha. Mas, justiça seja feita, foram bastante aplaudidos durante todo o show.
O capixaba Silva acabou sendo a grata surpresa da noite. O mais novo frequentador dos cadernos culturais dos jornais de São Paulo tem uma proposta bem interessante. Com um formato minimalista, que se resume numa dupla que comanda teclado, bateria e programações, Silva reinventa o pop inglês dos anos 80 com um quê de gótico e leves tons de Smiths e Cure, mas tudo isso sobre camadas de psicodelia vindo dos teclados de Silva e da bateria digital (daquelas que o RPM usava), como na climática e densa “Falando Sério”. Ainda tiveram a cara de pau de mandar uma versão pós-moderna de “Taí” , marchinha que foi sucesso na voz de Carmem Miranda. Eis um show que vale a pena ver de novo quando passar por Recife.
Mesmo com o som do palco longe do ideal, o Volver conseguiu fazer um baita show. Abriram com “Próxima Estação” e foram emendando um hit atrás do outro. Voltaram ao início de carreira com a já clássica “Você que Pediu”, que trouxe ao Chevrolet Hall um pouco do gosto da cena pernambucana dos primeiros anos da década passada. Tiraram da manga a sensacional “Mallu”, em homenagem a Mallu Magalhães e cuja genial letra faço questão de transcrever na íntegra aqui: “Mallu quer ser mulher / Não tá pra brincadeira / Ela só faz o que bem quer /Não sabe ser de outra maneira. / Maluco é ser mulher / Nem todo mundo aguenta / De fato não é pra quem quer / Tem gente até que tenta. / Mallu já decidiu que vai mudar / Usando salto alto em vez de All Star / Nem viu que quase nada aconteceu. / Mallu deseja um dia se casar / Ouvindo Bob Dylan no altar dizendo “Ei garota, cê cresceu.” E ainda teve “Tão Perto, Tão Cedo” e “Clarice”, todas cantadas em uníssono pelos fãs, regidos por uma banda que, em dez anos de carreira, se mostra cada dia mais madura.
E aí veio o Television. E, ainda que para boa parte do público eles mais parecessem coroas completamente deslocados de seu tempo, foi emocionante ver a banda comandada pelo lendário Tom Verlaine despejar seu som despojado de frescuras no Abril pro Rock. Da mesma geração de Ramones, Blondie e Talking Heads, o Television meio que sempre caminhou por fora. Sua sonoridade não se encaixa nem no punk puro e simples dos Ramones e muito menos na intelectualidade de sons globalizados do Talking Heads. Trata-se de uma sonoridade crua, simples, única. Os tiozinhos abriram o show sem se dirigir ao público. Não se importavam com os longos intervalos entre as músicas, onde gastavam bastante tempo afinando guitarras e até bateria! Meticulosos ao extremo, foram ganhando o público aos poucos, com gemas do quilate de “Glory”, do clássico álbum “Adventure”, lançado, vejam só, em 1978! Houve um pequeno momento de tensão, quando alguém jogou uma lata que quase acertou o guitarrista Jimmy Rip, que ficou furioso, encarou a plateia e mandou os seguranças tomarem as devidas providências. Mas Rip e o sujeito acabaram se entendendo, e depois da execução de uma das pedras fundamentais do rock, “Marquee Moom”, os coroas estavam com o público literalmente nas mãos, que “suportou” bem as infindáveis e famosas improvisações do Television no palco. Com menos de uma hora de apresentação, foi um show curto, grosso e inesquecível para quem é apaixonado pela hiostória do rock. Afinal, uma parte bem importante dela estava ali presente ontem.
Quando foi anunciado o nome de Marcelo Jeneci, muita gente correu para a frente do palco. Ali ficou nítido que ele era, para o público, a principal atração da noite. E Jeneci não decepcionou. Acompanhado da ótima vocalista Laura Lavieri, o ex-sanfoneiro de Chico César mostrou com eficiência por que é considerado hoje um dos principais nomes da música brasileira. Seja na poesia angustiada de “Tempestade Emocional”, no hit “Felicidade” ou na linda “Pra Sonhar”, Jeneci e banda esbanjaram experiência de veteranos. Não seria exagero dizer que deveriam ter fechado a noite, pois muita gente foi embora depois do show dele. Que, aliás, foi irretocável.
Depois foi a vez de Siba mostrar seu mais recente trabalho, “Avante”, que traz o músico mais urbano do que o habitual. Trocando a tradicional rabeca pela universal guitarra, Siba conseguiu um interessante diálogo entre suas pesquisas na Zona da Mata com uma sonoridade mais encorpada, mais elétrica, mas sem jamais abrir mão de sua raiz nordestina. A plateia cantou com ele boa parte de suas canções, que soam como uma espécie de cavalo marinho revisitado. A síntese disso pôde ser conferida em “Ariana” e “A Bagaceira”, que apresentam um siba mais leve, descontraído e roqueiro. Ou seja, um Siba mais parecido com o início da carreira do Mestre Ambrósio no início dos anos 90, quando a formação do grupo ainda era elétrica. É gratificante testemunhar como Siba tem crescido como músico e compositor. Ou seja, como o grande artista que é.
E o sempre competente e animadíssimo Móveis Coloniais de Acaju tratou de fechar a noite colocando todo mundo para dançar, como de costume. Driblaram os problemas de som (todos os shows no palco em que eles tocaram tiveram algum problema técnico) e fizeram a festa com hits como “Perca Peso”, de “Idem”, seu trabalho de estreia e, de longe, o melhor deles. Já passava das três da matina, e a sensação que ficou foi a das primeiras edições do Abril pro Rock, em que chuvas violentas eram sinônimo de shows inesquecíveis. Ontem, por alguns instantes, o Chevrolet Hall lembrou o Circo Maluco Beleza de 1996. E a lembrança não poderia ser melhor…
3 Comments
Sodomm !!!
“… acertou o guitarrista Richard Lloyd…”
Não era o Richard Lloyd. Quem tá tocando guitarra na banda é o Jimmy Rip.
Obrigado, david! Chequei a informação e vc realmente tem razão. Corrigido =)